Crónicas
Ensaio sobre a Ignorância Inteligente
6 de outubro 2025
Somos expostos a um universo digital onde a diversidade de pensamento é substituída pela homogeneidade do algoritmo. O resultado é perverso: acreditamos que controlamos a informação, quando na realidade é a informação que nos controla a nós.
George Orwell escreveu que “ignorância é força”. Talvez nunca essa frase tenha sido tão atual. Vivemos uma era onde a abundância de informação não nos torna mais conscientes, apenas mais confortavelmente condicionados. Temos acesso a tudo, mas compreendemos cada vez menos. E o mais preocupante é que este novo modelo de “ignorância inteligente” surge envolto em tecnologia, algoritmos e IA — ferramentas que prometem libertar-nos, mas que subtilmente nos treinam a pensar menos.
A capacidade de pensar criticamente, de discutir ideias com quem pensa diferente e de aprender com o dissenso é um exercício cada vez mais raro. Hoje, um simples debate entre amigos sobre política, religião, economia ou ciência transforma-se rapidamente num campo de batalha digital. Já não se discute para compreender, discute-se para vencer e por vezes é comum assistir a conversas de pessoas a globalmente verbalizarem o mesmo, mas como já não se ouvem cada um está no seu canto aos gritos. As pessoas já não sabem discutir! E quem ousa divergir é empurrado para fora do grupo, num processo social tão eficaz quanto invisível. A aprovação substituiu a reflexão.
Yuval Noah Harari alertou recentemente, no seu último livro “Nexus” que, para impedir que “redes demenciais triunfem — tal como temporariamente Hitler e Estaline o fizeram —, é preciso pôr “mãos à obra”. A advertência é clara: se deixarmos que a desinformação, o tribalismo e a preguiça cognitiva se tornem norma, a história repetirá os seus piores capítulos — só que desta vez com algoritmos como condutores. O perigo não é apenas a mentira, é a normalização da meia-verdade.
Vivemos, paradoxalmente, numa era de “ignorantes felizes”. O acesso à informação é infinita, mas o nosso acesso é moldado por filtros invisíveis. As redes sociais, que prometiam democratizar o conhecimento, criaram bolhas de consenso onde cada um vê apenas o que confirma as suas crenças e assegura com isso a verdade “única e indiscutível”. Somos expostos a um universo digital onde a diversidade de pensamento é substituída pela homogeneidade do algoritmo. O resultado é perverso: acreditamos que controlamos a informação, quando na realidade é a informação que nos controla a nós.
Esta “ignorância inteligente” é o novo produto do século XXI: sofisticada, polida e algoritmicamente confortável. Não nasce da falta de acesso, mas da ilusão de que já sabemos o suficiente. Deixámos de procurar o contraditório e começámos a confiar em sistemas que nos dizem o que queremos ouvir, transformando-nos em consumidores obedientes de pensamento pré-formatado. A pressão social é global e de dimensão bem maior e empolada, ou seja, já não vem do “meu bairro”. Passou a vir de milhões de vozes online que reforçam a ideia de que pensar diferente é ser o patinho feio num lago de opiniões iguais.
E aqui regressamos à ironia de Orwell: a ignorância é força, mas hoje é uma força amplificada por tecnologia. A força de um sistema que prefere cidadãos dóceis a mentes críticas. Quanto mais “inteligentes” se tornam as máquinas, mais delegamos nelas o raciocínio, o julgamento e até a moral. O que antes era a preguiça de pensar, tornou-se agora a preguiça programada de questionar.
O desafio é, portanto, cultural e civilizacional: recuperar a arte do debate, o prazer da discordância e a coragem de não pensar como o algoritmo nos sugere. A Inteligência Artificial pode ajudar-nos a evoluir, mas apenas se a usarmos como ferramenta de consciência, e não como anestesia coletiva. Porque o verdadeiro risco da era digital não é sermos controlados por máquinas… é sermos voluntariamente treinados para pensar como elas.




